quinta-feira

Sintoma e Conceitualização de Caso

 


A Interpretação dos Sintomas na Psicologia Clínica: Fumaça, Vulcão e os 3 Ps na Conceitualização de Caso


Na escuta clínica, o sintoma não deve ser compreendido como um inimigo a ser combatido, mas como um sinal que anuncia algo mais profundo — assim como a fumaça que emerge de um vulcão sinaliza uma movimentação intensa no seu interior. A imagem do vulcão nos convida a compreender que os sintomas psíquicos são apenas a face visível de uma complexa engrenagem interna que envolve vivências, vulnerabilidades e histórias emocionais.


Sintomas como ansiedade, somatizações, distúrbios alimentares, comportamentos opositores ou retraimento social, muitas vezes, são apenas a “fumaça” de processos emocionais subterrâneos que precisam de interpretação cuidadosa e acolhedora. Eles são expressões legítimas de sofrimento, e não meros comportamentos a serem extintos. Segundo a Terapia do Esquema, esses sintomas são ativados por esquemas desadaptativos formados em contextos de necessidades emocionais não atendidas na infância (Young et al., 2008).


Para além da descrição comportamental, é necessário compreender o que mantém, ativa ou predispõe esse sintoma, por meio de uma análise clínica conhecida como os 3 Ps: Predisponentes, Precipitantes e Perpetuantes. Essa organização contribui para a conceitualização de caso, permitindo uma intervenção que vá além do sintomático e abarque o histórico emocional do sujeito.

- Fatores Predisponentes referem-se à história pregressa do indivíduo, como experiências precoces de insegurança emocional, traços de temperamento, vivências de negligência ou superproteção, e estilos parentais que interferiram no desenvolvimento da autonomia e da autoestima.

- Fatores Precipitantes são eventos desencadeantes que ativam esquemas emocionais preexistentes, como separações, perdas, mudanças bruscas ou adoecimentos.

- Fatores Perpetuantes dizem respeito a tudo aquilo que mantém o sintoma ativo, mesmo após o evento inicial ter passado, como padrões de evitação, reforços ambientais involuntários e ausência de suporte afetivo consistente.


De acordo com Abreu (2019), os padrões de apego desenvolvidos na infância moldam a forma como o sujeito lida com emoções, relacionamentos e estressores ao longo da vida. Quando a criança cresce em um ambiente relacional instável, suas estratégias de vinculação podem se tornar inseguras, gerando dificuldades de regulação emocional e contribuindo para o surgimento de sintomas clínicos.


Gerhardt (2017) complementa ao destacar que os primeiros vínculos moldam diretamente o desenvolvimento do sistema nervoso e a capacidade de autorregulação. A ausência de cuidados responsivos e consistentes impacta áreas como o sistema límbico, o eixo HPA e os níveis de ocitocina, contribuindo para maior vulnerabilidade ao estresse, estados de hiperativação ou colapso emocional.


Esse olhar clínico integrativo fundamentou a atuação descrita por mim, enquanto psicóloga hospitalar, no artigo científico publicado na Revista Residência Pediátrica (Lira, Guerra, Costa & Santos, 2024), onde realizamos uma intervenção psicológica precoce no contexto de dor crônica idiopática em adolescentes internadas em unidade de enfermaria pediátrica. Utilizando os 3 Ps como eixo de conceitualização — predisponentes, precipitantes e perpetuantes — investigamos o papel do apego inseguro como fator de risco central na sintomatologia dolorosa.


Nos casos descritos, técnicas de reparentalização limitada, escuta validante e abordagem das memórias traumáticas promoveram rápida redução da dor, diminuição da necessidade de analgésicos e melhora funcional em poucos dias de internação. Essa experiência clínica reforça o entendimento de que o sintoma (a dor, nesse caso) é apenas a superfície visível de uma história emocional mais profunda que precisa ser ouvida e integrada. A psicologia hospitalar, ao atuar desde a admissão, foi capaz de acessar as raízes do sofrimento psíquico e contribuir para uma recuperação mais eficaz, afetiva e menos medicalizada.


Como destacam Siegel e Bryson (2015), “a integração é a base da saúde”. E integrar, na prática terapêutica, significa unir o que foi fragmentado — corpo, emoção, memória, vínculo — para que o sujeito possa, enfim, viver com mais liberdade e segurança interna.




Referências


Abreu, C. N. (2019). Teoria do apego: Fundamentos, pesquisas e implicações clínicas. Artesã Editora.


Gerhardt, S. (2017). Por que o amor é importante: Como o afeto molda o cérebro do bebê (2ª ed., M. Ritomy, Trad.; L. V. Corso, Rev. técnica). Artmed.


Lira, R. R. S., Guerra, K. R. N. B., Costa, B. M. B., & Santos, A. R. B. V. (2024). Intervenção no apego inseguro para tratamento da dor crônica idiopática em pediatria. Residência Pediátrica, 14(2), 1–4. https://doi.org/10.25060/residpediatr-2024.v14n2-998


Siegel, D. J., & Bryson, T. P. (2015). O cérebro da criança: 12 estratégias revolucionárias para nutrir a mente em desenvolvimento do seu filho e ajudar sua família a prosperar (C. Zanon, Trad.). nVersos.


Young, J. E., Klosko, J. S., & Weishaar, M. E. (2008). Terapia do esquema: Guia do terapeuta. Porto Alegre: Artmed.




Psicóloga Kátia Baptista Guerra

CRP 02/22746

Especialista em Psicologia Clínica e Hospitalar

Neuropsicóloga | Neurociência e Trauma na Infância | Transtornos Alimentares

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